2 a 11 nov 2020
residência de criação
Centro de Artes Performativas do Algarve CAPa

o riso dos necrófagos
Zia Soares | Teatro Griot
Portugal
texto inédito Zia Soares
encenação Zia Soares
actores Benvindo Fonseca, Binete Undonque, Daniel Martinho, Gio Lourenço, Matamba Joaquim, Vera Cruz, Zia Soares
música original e design de som Chullage
design de luz Eduardo Abdala
cenário e figurinos Neusa Trovoada
movimento Lucília Raimundo
fotografia Abdel Queta Tavares
vídeo/teaser António Castelo
co-produção Teatro GRIOT, Culturgest
parcerias CACAU, Câmara Municipal da Moita, Hangar, Memoirs – projeto do CES, Universidade de Coimbra
o riso dos necrófagos parte dos terríveis acontecimentos da Guerra da Trindade, também conhecida como Massacre de Batepá, um dos episódios mais sangrentos do período colonial, decorrido em São Tomé e Príncipe em Fevereiro de 1953.
O itinerário de criação inicia-se com uma residência artística em São Tomé e Príncipe onde a encenadora Zia Soares e o músico Chullage têm como pontos de partida: o relato dos mais velhos, que viveram os terríveis acontecimentos de 1953, os relatos dos mais jovens que ouviram contar as histórias do massacre e o percurso ritualístico cumprido na Ilha de São Tomé, no dia 3 de Fevereiro, em homenagem aos que morreram.
O massacre provocou um número indeterminado de mortos, muitos foram enterrados em valas comuns, sem nome e sem ritos fúnebres. Para os santomenses essesmortos são ainda presenças fantasmagóricas na ilha. Os fantasmas de 1953 não são metáforas ou fruto da criação artística, fazem parte do simbólico, mas são também existências materiais que se manifestam no quotidiano.
O material recolhido durante a permanência da encenadora e do compositor em São Tomé serve de base para a fase inicial da escrita do texto e da composição sonora.
O processo desenvolve-se a partir da ideia de pós-memória. Durante o período de ensaios a equipa convida a comunidade da Quinta do Mocho (bairro onde habita uma significativa comunidade santomense) a juntar-se no auditório da Casa da Cultura de Sacavém para conversas informais , que constituem material para uma segunda etapa do trabalho dramatúrgico. A performance sonora é essencial na captura da atmosfera das memórias encontradas tanto em São Tomé quanto na Quinta do Mocho. Conceptualmente, o desenho de som recorre a alguns artifícios técnicos de forma a evocar uma espécie de som alegórico que mistura o som e a voz pré-gravada dos actores. A banda NeKrófagos — que integra o músico DJ Marfox, de ascendência santomense, morador do Bairro da Quinta do Mocho e um dos mais conceituados músicos da “batida” — formada especificamente para este projecto, tocará ao vivo nas apresentações do espectáculo.
Passados mais de 60 anos trata-se de uma memória desfocada pela passagem do tempo, ficções da memória na voz dos que continuaram — os que lá estiveram e os que construíram uma imagem a partir dos relatos que ouviram.
A passagem destes discursos para o chão da performance implica que a narrativa se construa, também ela, com discursos imagísticos, na matéria volúvel da memória, impregnando-se de subjectividades e ficções pessoais.
No espectáculo essas ficções tornam-se progressivamente mais delirantes na medida em que os vestígios e os fragmentos do massacre são reconfigurados a partir da ideia de celebração — a festa, a liturgia e os aspectos ritualísticos do quotidiano — numa ilha que é uma espécie de limbo, onde os mortos interrompem a linearidade temporal e os nexos de causalidade dos vivos.